Meias Verdades

Produtividade máxima,
deserdados esquecidos

DANIEL LIMA - 01/04/2003


  •  A revista Veja de 11 de dezembro de 2002 apresentou sob o título “A revolução industrial dos anos 90″ um primor de alheamento socioeconômico. Os principais trechos do texto:

Os brasileiros começaram os anos 90 dirigindo carros de modelos ultrapassados se comparados aos que circulam no exterior. Doze anos depois, as ruas das principais cidades do Brasil exibem veículos semelhantes aos encontrados nas capitais de Primeiro Mundo. Nas prateleiras das lojas e dos supermercados, as mudanças também foram da mesma magnitude. Esse avanço de qualidade é uma dádiva do aumento da produtividade da indústria brasileira, que permitiu fazer produtos melhores a preços menores. Medida pelo número de produtos que cada empregado fabrica por ano, a produtividade da mão-de-obra cresceu a uma taxa anual de 8%. O desempenho é cerca de 20 vezes superior ao da década de 80. Comparado a algumas das principais economias mundiais, o desempenho brasileiro também é digno de registro. Somente a Coréia teve um crescimento anual maior no mesmo período.


Por qualquer lado que se examine a questão, os números são impressionantes. Em 1992, um empregado do setor têxtil no Brasil produziu três toneladas de tecido por ano. Hoje, produz cinco vezes mais. No começo da década de 90, um televisor de 20 polegadas levava 45 minutos para ser montado. Com o aumento da eficiência, o tempo caiu para 20 minutos.


Até o início da década de 90, o Brasil tinha barreiras altas para evitar as importações e proteger a indústria local. Na época, a importação de cerca de 2.000 itens — entre eles, automóveis — era proibida. Sem a menor perspectiva de competir com produtos estrangeiros no mercado doméstico, as empresas brasileiras não tinham incentivos para aumentar a produtividade e melhorar a qualidade. Com a redução das barreiras, isso mudou.


Apesar do aumento da produtividade, o Brasil ainda não se encontra entre os países mais competitivos do mundo (…) O Brasil é responsável por apenas 1% do total das exportações mundiais. Se a produtividade continuar a crescer, o impacto na exportação será positivo.


A reportagem-análise de Veja peca pela superficialidade. Glorificar a economia brasileira em duas páginas referindo-se especificamente à destrambelhada abertura econômica iniciada com Fernando Collor de Mello e agravada por Fernando Henrique Cardoso — sem mencionar uma única vez a leva de deserdados, especialmente do setor industrial — é algo digno de prêmio especial de desinteresse social.


O texto de Veja é acintosamente ofensivo à realidade nacional num dezembro como o de 2002, quando o Brasil, por força de uma coleção de erros econômicos nos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, estava à deriva com a volta inflacionária, juros elevadíssimos, produção em queda e contínua perda do que restou de ganhos sociais e econômicos dos primeiros anos de Plano Real.


Contrariamente ao que afirmou a revista de circulação nacional, que coloca a produtividade como deus do Olimpo econômico, o Brasil realizou só parte da tarefa de modernização. O contraponto da desmesurada abertura econômica foi a desnacionalização empresarial. Como consequência da velocidade exageradamente condescendente com os interesses externos, chegamos ao contra-senso de modernizar produtos, entre os quais os veículos, e não ter mercado interno para adquiri-los por causa da brutal queda de renda. Pior que isso: com capacidade instalada para 3,2 milhões de veículos por ano, as montadoras instaladas no Brasil mal-e-mal produzem a metade. Acumulam demissões e prejuízos porque o Brasil apresentado aos investidores internacionais não existe, já que dois terços dos 170 milhões de habitantes mal conseguem sobreviver. Sem mencionar que a taxa de produtividade foi empinada pela guilhotina nos empregos. Menos gente produzindo mais ou o mesmo. Só na indústria paulista a Fiesp registra 640 mil baixas entre trabalhadores durante o governo FHC.


Mesmo com toda a tecnologia que revolucionou a produção nacional, o Brasil continua a escanteio no jogo da exportação, com indicadores bem aquém do passado de autarquismo obsoleto. O festejado superávit de US$ 13 bilhões em 2002, depois de déficits acumulados desde a implantação do Plano Real, se deve basicamente ao corte das importações e ao dólar supervalorizado.


Outros players da competição internacional modernizaram-se mais e abriram-se moderadamente, no limite de contrapartidas que são a palavra mágica no mundo do comércio internacional. Ao contrário do Brasil, não entregaram de bandeja seu mercado interno e muito menos encararam o sistema financeiro internacional com o fanatismo dos fundamentalistas de mercado, fazendo de uma moeda nacional artificialmente sobrevalorizada a expressão de enganosa política econômica.


Um trabalho que trata da produtividade da indústria nacional sem o agregado de informações sistêmicas num mundo globalizado desrespeita a inteligência de leitores razoavelmente preparados que Veja, nesse caso específico, desdenhou. Provavelmente para lustrar o ego de pecaminosos gerenciadores macroeconômicos do País.


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